A famosa frase do personagem Marcelo para Hamlet, no ato 1 da peça escrita por Shakespeare é o prenúncio de que algo tenebroso está à espreita. Com o mal iminente, Hamlet recebe o alerta e, desde então, passa a comportar-se loucamente para compreender o que se passa ao seu redor e tentar sobreviver.
A peça é uma das principais do autor inglês e pode ser interpretada meramente como um conto sobre vingança decorado com perversões, mas também como uma crítica social. Assim, a Dinamarca, no caso, seria a própria Inglaterra de Shakespeare e os personagens uma metáfora para a sociedade da sua época.
Entretanto, se colocarmos na perspectiva do Chelsea, podemos perceber que nem tudo é o que parece quando o time vai mal. A eleição de um culpado pelos problemas dentro de campo passa pela constatação de que “há algo de podre…”. Assim, há alguma peça na engrenagem do maquinário que não está bem azeitada ou precisa ser substituída. Mas será que foi isso mesmo que Marcelo disse?
Primeiro Tempo: O alvo dinamarquês
O zagueiro Andreas Christensen vem sofrendo críticas por parte da torcida por conta das atuações recentes. Muitos consideraram o defensor pessoalmente culpado por muitos dos gols recentes dos Blues, inclusive dois dos três na derrota para o Sheffield United na última partida. Entretanto, assim como na peça, o representante dinamarquês pode ser somente uma metáfora para culpados que não podem ser apontados diretamente.
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Seja por protecionismo ou por desconhecimento, o fato é que, tanto na ficção como na realidade, a Dinamarca acabou sendo o bode expiatório para a Inglaterra. Portanto, será que se pode considerar Christensen como o vilão da história?
Problemas defensivos pré-existentes
Kurt Zouma chegou em 2014, Christensen em 2015, Marcos Alonso em 2016 e Antonio Rudiger em 2017. A maioria das nossas peças defensivas está no Chelsea há algum tempo. Ou seja, se o problema é dos jogadores, ele não é de agora. Consequentemente, pode-se afirmar que, se as falhas são recentes, o problema não são os atletas.
De fato, assim como na sociedade da peça, o problema está enraizado nos últimos anos dos Blues. Desde a temporada do primeiro título da Europa League as deficiências defensivas vêm sendo mascaradas por esquemas ou técnicos que sabiam das falhas e as resolveram momentaneamente. Desde José Mourinho, passando por Antonio Conte e Maurizio Sarri, o Chelsea somente demonstrou lampejos do sistema defensivo recordista da primeira passagem do técnico português.
Segundo Tempo: Comandante imune a questionamentos
Muito se diz dos problemas dentro das quatro linhas enfrentados por todos. Todavia, uma peça que nunca é colocada à prova é a figura de Lampard. O manager responde aos questionamentos sempre como indivíduo segregado do grupo que comanda. Além disso, frequentemente as críticas da torcida e dos jornalistas são direcionadas aos jogadores e ao porquê não seguiram as ordens do treinador.
Por outro lado, quando o time vai bem e as coisas dão certo – seja por incapacidade adversária ou mérito próprio – os louros vão todos para o inglês no comando. A sua história vitoriosa no clube parece erguer uma barreira à prova de dedos apontados e o torcedor acaba enxergando Lampard com os óculos do sentimento. Portanto, essa visão, apesar de necessária, pode ser parcial e injusta com o contexto presente.
Erros consertados ainda são erros
No último jogo, por exemplo, ao enfrentar o Sheffield United, Lampard pecou na escalação inicial. Ao começar com o garoto Tammy Abraham, em má fase, em vez do experiente Giroud, que vem marcando gols, demonstrou dúvida. Além disso, o treinador também não levou em consideração o esquema e a forma de jogar do time adversário.
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Assim, a criatividade ofensiva foi tolhida pela marcação baseada em superioridade numérica dos Blades, e a fragilidade aérea defensiva escancarada pela proposta de contra-ataque dos anfitriões. Lampard também foi ingênuo ao escalar um meio de campo igual baseado em jogadores diferentes. Um meio com N’golo Kanté não tem as mesmas necessidades de um meio-campo com Jorginho. Portanto, outra má escolha pode ter queimado o ítalo-brasileiro – outro alvo da torcida.
Porém, apesar da prudência ser desejável, pensar demais leva à covardia. Isso pôde ser notado novamente no último jogo. Lampard “consertou” a escalação inicial voltando ao esquema com três zagueiros. Contudo, o treinador se acomodou no fato do seu time só conseguir chegar por bolas aéreas. Assim, abriu mão totalmente da criatividade e da ousadia colocando dois centroavantes altos em campo. O fruto do excesso de prudência do treinador foi um lado previsível e ineficiente, castigado pelo contra-ataque.
Terceiro Tempo: Somos todos heróis com traços de vilania
Assim como a obra de Shakespeare nos ensina, não podemos considerar de forma tão inocente as coisas como boas ou más. O mesmo acontece com as pessoas, na vida e no esporte. Não existe um só culpado pelas mazelas atuais e recorrentes dos Blues. Tampouco existe uma só solução. Assim, os acontecimentos devem ser avaliados com base na proposta, na realidade atual e no quadro mais amplo.
Entretanto, isso não quer dizer que deve haver imunidade a críticas. Pelo contrário, Hamlet demonstra que o bajulador é um espelho que só mostra o que queremos ver. Assim, para evoluirmos, precisamos do confronto, mas de forma construtiva. Portanto, não há algo de errado especificamente com o “reino da Dinamarca”.
O tempo é o maior aliado
É fato conhecido que o Chelsea não costuma dar muito tempo para seus treinadores funcionarem com o time. Todavia, somente analisando um período maior de tempo é que podemos ter as mudanças necessárias de forma duradoura.
Um carvalho vive mais de 1.000 anos. Portanto, não se pode julgar fracassado um exemplar antes dos 100 anos – idade da maturidade. Ou seja, os frutos de um trabalho de longo prazo só serão colhidos no futuro. A transformação pode ser dolorosa, demorada e frustrante, principalmente para quem só a está assistindo, não vivendo.
Com o destino ligado aos Blues, Lampard precisa de tempo para ajustar as coisas. O inglês inclusive já se propôs a fazê-lo, assim como Hamlet que bravejou tristemente: “Nosso tempo está desnorteado. Maldita a sina, que me fez nascer um dia para consertá-lo”.