Há pouco da temporada 2015-2016 que o torcedor do Chelsea faz questão de lembrar. Com erros crassos cometidos pela diretoria na pré-temporada, desentendimentos do treinador com jogadores e até mesmo com a médica da equipe e muito azar com lesões, o Chelsea deu um show de desorganização na temporada após o título, e fez sua pior campanha na Premier League em 20 anos.
Mas apesar do mau desempenho, a liga inglesa nos presenteou com um acontecimento raríssimo que foi capaz de encantar a maioria dos apreciadores do futebol: o Leicester City, equipe que a princípio era candidata a lutar contra o rebaixamento, conquistou o inédito título da Premier League. Sob o comando do ex-blue Claudio Ranieri, a equipe desafiou a lógica e ergueu o caneco no que ficou conhecido como Conto de Fadas do futebol.
E nesse conto de fadas onde os principais protagonistas foram o artilheiro Jamie Vardy e o craque do campeonato Riyad Mahrez, duas figuras de menos grife também conseguiram se destacar: a dupla de meio campistas N’Golo Kanté e Danny Drinkwater tiveram larga participação naquela campanha.
Observado com muita atenção pelo Chelsea, o francês desembarcou em Londres logo na temporada seguinte. Apenas um ano mais tarde, foi a vez de Drinkwater chegar para tentar reeditar a parceria que deu muito certo no meio-leste da Inglaterra. E para quem não lembra tanto assim daquela temporada, o que esperar da dupla de ex-volantes do Leicester?
Talvez essa pergunta seja desnecessária se tratando de Kanté. Há cinco temporadas, estava na terceira divisão da França. Há quatro, na segunda. Há três, estreou na primeira, e suas excelentes atuações o levaram ao Leicester, onde foi campeão da Premier League, repetindo o feito na temporada seguinte pelo Chelsea, onde teve seu trabalho coroado com o prêmio de melhor jogador da temporada.
Quanto a Drinkwater, sua jornada também foi cheia de reviravoltas: natural de Manchester e cria das categorias de base do United, rodou várias equipes do Reino Unido por empréstimo até encontrar um lugar ao sol no Leicester. Mas foi só com a chegada de Claudio Ranieri que passou a figurar entre os principais jogadores a se observar na Inglaterra (a ponto de valer 35 milhões de libras), chegando a ser convocado para a seleção nacional da Inglaterra.
Na temporada em que jogaram juntos no Leicester, Drinkwater foi titular desde o início, mas Ranieri preferia utilizar Gokhan Inler ou Andy King na posição de Kanté. Foi somente durante a derrota por 5 a 2 para o Arsenal que o treinador italiano percebeu que precisava mudar, e confiou em Drinkwater e Kanté para organizar aquela equipe. Depois disso, com os dois donos da meiuca em campo, a equipe dos Foxes só saiu derrotada em mais uma oportunidade.
A assiduidade da dupla também chamou atenção: Kanté esteve indisponível em um único jogo, e Danny em três – números que são muito interessantes para o Chelsea, uma vez que a chegada do inglês visa também rechear de opções o elenco que era considerado curto, mas que vai disputar muitas competições na temporada e não pode dar-se o luxo de perder jogadores.
Mas, afinal, além da qualidade individual, o que explica o sucesso da dupla enquanto atuaram juntos? A resposta mais óbvia é o esquema tático montado por Ranieri. O 4-4-2 favoreceu o estilo de jogo intenso dos dois, e a incessante busca por divididas de bola fazia com que as partidas fossem muito duras para os adversários. Além disso, a sensação de que os dois se completavam era recorrente.
O dirigente do Leicester Steve Walsh chegou a afirmar que o 4-4-2 de Ranieri enganava aqueles que pensavam que os Foxes jogavam com dois homens no meio campo: “Não, nós não jogamos com dois no meio. Jogamos com Danny no meio e Kanté em qualquer outro lugar, o que nos deixa com a vantagem de 12 homens em campo.”
As estatísticas não mentem: Drinkwater foi bem sucedido em 74 roubos de bola (a título de comparação, o dobro de Nemanja Matic na última temporada), e Kanté em impressionantes 125, mais que qualquer outro na Premier League. Embora a diferença possa parecer gritante, vale lembrar que Danny também era importante em outra função em campo: o inglês se destacou pelas enfiadas de bola e lançamentos, demonstrando boa qualidade criativa. Apesar de sua taxa de precisão em passes (79%) não parecer grande coisa, isso se devia principalmente ao fato de que ele era o responsável por tentar as jogadas mais arriscadas, em sua maioria para Jamie Vardy. E obteve sucesso, anotando sete assistências e 37 passes-chave.
Dá para imaginar que no Chelsea ele será capaz de fazer o mesmo com o camisa 9 Álvaro Morata (que também tem a característica de Vardy de ser veloz e buscar a bola), podendo ser mais preciso que os zagueiros David Luiz e Gary Cahill, que geralmente são os responsáveis pela bola longa.
No entanto, assim como toda a equipe do Leicester, Drinkwater teve uma queda de rendimento na temporada 2016-2017. E apesar de não ter ido tão bem quanto na época anterior, isso está longe de significar que o novo camisa 6 do Chelsea é um one-season wonder. Com a saída de Kanté, o meio-campista se viu obrigado a reinventar seu estilo de jogo, e passou a se destacar mais por sua qualidade defensiva, deixando suas características de visão de jogo e passes um pouco de lado, tornando-se mais um “camisa 5” do que um “camisa 8”. Além do mais, o inglês já havia sido indicado para a premiação de melhor jogador da segunda divisão inglesa em 2014. Pode parecer pouco, já que o nível da Championship não é tão alto quanto na Premier League, mas prova que Drinkwater mostra um futebol de bom nível já há um tempo, mesmo que antes de 2015 fosse mais discreto.
Mas será que a dupla poderá mesmo ser reeditada no Chelsea? A titularidade de Kanté é hoje incontestável, mas Drinkwater precisará trabalhar duro para conseguir uma vaga na equipe titular, principalmente pela presença Cesc Fàbregas e chegada do francês Tiémoué Bakayoko, que atuam na mesma posição. Mas apesar da incerteza, Antonio Conte é um fator que pode pesar a favor de Danny: algumas notícias antigas relembram que o treinador havia demonstrado interesse em sua contratação ainda na temporada anterior. E mais importante, o italiano parece querer voltar a usar a formação tática do 3-5-2, utilizando três meio-campistas ao invés de apenas dois.
A preocupação de Conte em reforçar seu meio campo na janela de transferências acaba sendo justificada, uma vez que ele já usou o 3-5-2 que o consagrou na Juventus e na seleção da Itália em algumas oportunidades neste início de temporada, deixando de lado o habitual 3-4-3. Sobrando mais uma vaga no meio campo, a versatilidade e força tanto no ataque quanto na defesa de Danny podem garantir a ele um espaço no XI inicial.
A expectativa de reeditar a dupla de meio-campistas que obteve sucesso há dois anos é grande, mas é preciso entender que o Chelsea atual funciona de uma maneira diferente daquele Leicester, e as táticas de Antonio Conte são muito mais complexas. Drinkwater precisa apresentar a mesma regularidade de seu companheiro Kanté, além de se mostrar capaz de compreender as ideias de Conte, seja no 3-5-2 ou no 3-4-3. Mas o homem de olhos azuis é um meia central muito cerebral e técnico, exatamente do estilo que seu novo comandante parece gostar.
A capacidade de encontrar espaços e consciência de seu entorno para não perder a bola se encaixam no estilo de jogo do Chelsea, e a última temporada atuando mais como um volante de contenção abrem a possibilidade de atuar até mesmo numa eventual ausência de Kanté. E mesmo se não vier a ser titular, será no mínimo uma ótima opção de meio campo no banco de reservas, fortalecendo o elenco para a disputa das competições domésticas e europeias (com experiência em ambas). A concorrência é forte, mas quem já passou quatro anos sendo emprestado por aí não pode ser do tipo que desiste fácil. E Kanté? Continua dispensando comentários.